segunda-feira, 28 de julho de 2014

AO BUREAU



Passada a recruta, porém, os períodos em que o serviço militar era pura burocracia preponderavam. Também para estes o soldado Brian estava bem preparado, física e psicologicamente.

Em primeiro lugar compreendia muito bem o princípio da coisa. Sabia francês o suficiente para perceber o que era um bureau — «bur» + «eau», burro de água. Para se sentar ao «bureau» eram necessárias a candura do burro e a fluidez da água. Brian sabia fazer-se desentendido como se exigia, não era nenhum desses soldados broncos que só estão bem à estalada e podem, assim, deitar a perder uma peleja. As vitórias eram feitas de intervenção, é certo, mas também de espera, de vigília.

E nesses longos momentos de tréguas havia muito que fazer. Ainda agora as cúpulas tinham solicitado às bases que procedessem a um inventário de todos os materiais de que se compunha o quartel e etiquetassem tudo com o respetivo código de barras. Brian, com a sua natural reserva, não se oferecera logo, mas pusera-se a jeito para que notassem, assim como quem não quer a coisa, a sua disponibilidade. E notaram. Então o soldado passou muitas tardes a catalogar cadeiras, mesas, as cortinas do gabinete do major-general, que eram de cassa branca e davam um ar fresco ao compartimento, os lápis afiados da sua mesa de trabalho, o agrafador, os clipes, os pisa-papéis, as bolachas, os sugus dos filhos do brigadeiro-general. Brian podia agora abarcar toda a panóplia de objetos existentes na caserna e como que assenhorear-se deles pela simples rotulagem. E pelo furtivo prazer de os desviar do seu poiso original.

Quando acabou a tarefa não se deixou dominar pelo ócio da cerveja à mesa da messe. Outras missões o aguardavam.

— Meus soldados, o RIPS do CEM-MIL, em conjunto com o ISAM do EMGFA, incumbiu o nosso regimento de recolher e processar o conteúdo dos relatórios produzidos no âmbito das operações de rotina interna nos quartéis do centro-sul.

Logo o soldado Brian se afanava a recolher e processar os acrónimos — RIPS àRepartição de Investigação e Pesquisa Secreta; CEM-MIL àCentro de Estudos Militares e Milicianos; ISAM àInstituto Superior da Armada Militante — e a visualizar o produto final, na forma de um relatório bem circunstanciado que desse conta, exaustivamente, com gráficos e tabelas, do conteúdo dos relatórios produzidos no âmbito das operações de rotina interna dos quartéis do centro-sul, entre os quais avultava o seu. Parecia-lhe tempo bem empregue, mas hesitava se havia de furtar a outro colega tamanha honra, o soldado Esteves, por exemplo, que por diversas vezes se mostrara tão bom camarada; ou mesmo o soldado Melo, mais arredio, mas, ainda assim, amigo de seu amigo, como sói dizer-se. A indecisão não durou muito. Em breve todos os olhares estavam fixados na sua pessoa e também com brevidade se pôde embrenhar na empolgante leitura daqueles relatos, que eram uma súmula do dia a dia dos seus congéneres, um espelho poliédrico da sua missão na terra. Naturalmente que foi louvado pelo seu trabalho, laboriosamente batido em Word e policopiado para distribuir e divulgar em todos os regimentos de norte a sul, servindo de leitura ao serão em não poucas escolas práticas e unidades militares.

Era por estas e por outras que o soldado Brian podia dizer que estava bem lançada a sua carreira militar.

O SOLDADO BRIAN


No reino da quantidade, nada distante e até bem perto de si, vivia o soldado Brian. Era um soldadinho um pouco cobarde, um pouco valente, como toda a gente, que se alistara no exército como podia ter ingressado no funcionalismo público, por ser um modo de vida igual a tantos outros.

Mas para aqueles que acreditam que há sempre uma razão por detrás de tudo, a vocação do soldado Brian decidira-se algures na infância, num dia em que, regressando da escola, fora perseguido por um bando de rufias e descobrira os secretos prazeres da resistência à dor e ao medo. O lastro libidinoso desse exercício espiritual era da ordem de grandeza do controlo esfincteriano para a criança anal de Freud. Havia uma elevação na espasmódica retenção de adrenalina que Brian nunca mais pôde esquecer, mesmo que a lembrança fosse puramente instrumental, toda ela convertida em subtis reações físicas. Chegou a casa de cara à banda, o braço esquerdo contundido, os joelhos raspados, as canelas maceradas. Porém, não se lhe via uma lágrima no olho e, camuflado entre as múltiplas equimoses, pairava no seu rosto um sorriso sáfico.

Para quem acha que o destino se decide noutro tempo, noutro lugar, a alma de Brian já levava uma boa rodagem, tendo vagueado muitos e muitos anos por mundos paralelos. Uma cigana que lhe lera a sina assegurara-lhe que ele ainda veria correr rios escarlates até que se extinguisse a fonte da vida. A taróloga do bairro nunca lhe deitava as cartas que não pespegasse na mesa, lado a lado, dois arcanos maiores, a Torre e a Força, às vezes não longe da Morte e do Diabo, quando não do Imperador ele mesmo. Mas o insight mais profundo fora-lhe transmitido pelo conhecido numerólogo Jonas Sabino, também mestre em regressões e transmigrações, que, reduzindo o seu nome e data de nascimento a uma cifra profética, descobrira que as suas últimas encarnações tinham sido em corpos de soberanos, nem sempre justos, nem sempre clarividentes mas augustos e munificentes, e agora sedentos de uma reparação pelas armas.

Para Brian o fator decisivo fora o som. O som e a guerra repercutiam-se. Para ser miliciano, era indispensável nascer com bom ouvido. Ninguém andava na formatura sem ritmo, não se podia marchar fora de compasso, até o desengatilhar da arma, o lançar da granada correspondiam à gestão entre o silêncio e a nota, se máxima, se longa, se breve ou semibreve na sua detonação. Era claro, era claríssimo, que todo o general tinha uma alma melódica. Quanto mais cruel e sanguinário, mais afinado o seu diapasão. A batalha era uma grande orquestra para sinfonias rubras, escritas na hora H.

Por isso, numa bela manhã de fim de verão, ele deixou a casa pela caserna. Não foi uma grande mudança: deitar cedo e cedo erguer, comida sempre a horas, higiene escrupulosa; em vez do galo mecânico a corneta da alvorada, em vez do quarto privativo a camarata pública. E, de resto, os vizinhos de tarimba eram todos filhos de boa gente, algum mais desordeiro ou arrevesado, mas isso era como em tudo, há sempre uma ovelha ronhosa no redil. Qual era a profissão que não contava entre os seus um oficiante metido a besta? Até nas hordas celestiais, apre!

A vida não foi logo fácil. Houve a recruta. Mas o soldado Brian tinha a seu favor aquele gosto de fossar, aquele apetite pela sevícia. Tinha também o seu metrónomo interior, que facilitava o cálculo da equação tempo x ritmo x andamento, de modo a poder andar ao sabor da corrente garantindo a sua dose q.b. de variações sobre um tema. Não despicienda era, também, a sua arte de orquestrar o biorritmo, com vista à homeostasia militar.

Dias havia em que o soldado Brian despertava com um incrível espírito de milícia e aproveitava-o bem: abria os olhos num disparo seco, no duche gargarejava uma marcha militar, escanhoava-se com argúcias de franco-atirador, aconchegava a farda com requintes mavórcios, acariciava barbaramente o cão da arma, o mundo por conquistar estendia-se à frente do quartel a perder de vista.

Noutros dias, que também não dava por mal empregues, acordava estranho, com um sabor a pimenta na boca, um desejo de se colar aos companheiros da caserna, uma fixação por cada um deles, este porque tinha uma forma sincopada de sacudir a cinza do cigarro, aquele porque se ria de modo asinino e convulso, o outro porque ajeitava os cobertores da tarimba com gestos tântricos. Certos pulsos, certos ombros eram para ele esculturas dravidianas. O soldado Brian questionava-se se isso seria amor universal ou outra coisa qualquer. Mas percebia que o homem se sente naturalmente atraído pelo que interceta a sua órbita, ao mesmo tempo que tem tendência para destruir o que invade a sua atmosfera. E era esta a causa de haver guerras.